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Ideário Arte-Luta

A capoeira tem seu curso histórico marcado por racismo, discriminações, preconceitos, estereótipos e perseguições sem par. Por outro lado, essa manifestação é fortalecida por uma experiência motriz, uma educação motriz, e uma cultura motriz decorrentes de matrizes africanas e afro-brasileiras e também pelo ecletismo do imaginário, exercitado diuturnamente como instrumento de resistência cultural. Ela não surgiu por acaso, nem tão pouco por uma intencionalidade dirigida, mas sim por circunstâncias sociais, econômicas e culturais e por isso mesmo a capoeira surgiu com grande abrangência em sua gestualidade, nos hábitos, costumes, posturas, valores, princípios e funções. Dessa forma, a capoeira só poderia surgir impregnada de elementos variantes da ludicidade à violência, da matreirice à ingenuidade; do profano ao sagrado.

A capoeira apresenta peculiaridades de dissimulação em toda a sua estrutura técnica de ataque e defesa. A estética, a dinâmica e os trejeitos das danças e folguedos próprios e integrantes do cotidiano do negro africano e seus descendentes suscitaram inúmeras particularidades tais como: a espontaneidade e a descontração nas ações da luta; a capacidade de improvisação e recriação; a continuidade de movimentação denotadamente expressa pela ginga; a alternativa das defesas serem realizadas através de esquivas. A capoeira se caracteriza também pelo predomínio da circularidade nas trajetórias dos golpes e movimentos; as acrobacias e negaças servirem de prelúdio do momento do ataque; a eficiência combativa não ser denunciada pelos golpes desequilibrantes e nem tampouco pelos traumatizantes, em qualquer momento do ataque, consequentemente as surpresas se sucedem sobre o adversário a cada movimento. Por fim, a capoeira se multiplica estilisticamente por tornar-se uma forma de expressão psicossomática de individualidades tanto como luta ou quanto como arte.

 

Entendo a Capoeira como produto histórico e como tal ela é dinâmica e sofre alterações e mudanças sucessivas impostas pela criação arbitrária da liberdade dos seus próprios agentes específicos, além das interferências provocadas pelo contexto em que está inserida e pela conjuntura do momento histórico. Dentro dessa perspectiva e possibilidade de criação arbitrária da liberdade e da minha condição de agente e produtor de história, senti-me no direito de resgatar seletivamente a capoeira e redimensioná-la de acordo com a minha maneira de ver e interpretar a realidade do povo brasileiro, as suas relações e a sua história. Assim me permiti idealizar e formular o Ideário Arte-Luta como um bem cultural imaterial brasileiro que sintetiza em sua prática corporal o belo e a eficiência, e como Ideário é um instrumento coadjuvante na construção de um comportamento crítico, criativo e transformador de quem a pratica.

 

O Ideário Arte-Luta é um complexo temático cujas idéias, concepções, princípios, processos, valores e estudos norteiam as minhas ações e atividades de ensino e prática da capoeira. Formulei o Ideário Arte-Luta procurando resgatar seletivamente, para o momento psicossocial atual, os valores, os princípios, o simbolismo e a gestualidade da capoeira, revestindo-os com a ciência, a minha vivência e a minha experiência, além de tentar buscar uma melhor compreensão dos momentos históricos e culturais pelos quais passou a capoeira. Destarte concebi e enfoquei o Ideário Arte-Luta como um bem cultural imaterial que sintetiza e exprime, através da prática corporal, o belo e a eficiência em seu manifesto ao ser externado pelo capoeirista; além de ser instrumento coadjuvante na construção de um comportamento crítico, criativo, solidário e transformador de seu praticante. A minha opção para concepção do Ideário Arte-Luta descarta a idéia de resgate da pureza, da autenticidade, da tradição e da gestualidade primitiva, com vistas à repetição ou simples reprodução. Busquei resgatar seletivamente as características e valores da capoeira, redimensionando-a sob a perspectiva do binômino arte-luta, temporalmente dinâmico na sua totalidade, espacialmente fluente e estruturada por classes funcionais de movimentos.

 

Na formulação do Ideário Arte-Luta, optei por uma prática corporal formada pela conjunção do gesto-musicultural com as qualidades físicas, expressa pela movimentação constante na consecução de quedas por desequilíbrios, de traumatismos por impactos, de defesas por esquivas, da plasticidade pelo estilo e da transcendência pela polifonia. (Zulu, 1995, p. 20)

 

A minha opção de ensino e prática da capoeira tem sua perspectiva vivencial-operativa retratada pelo Ideário, que dentre os princípios adotados admite, o comportamento ser construído numa interação entre homem, natureza e cultura, e quanto mais complexa seja esta interação, mais inteligente torna-se o ser humano.

 

Dentro das perspectivas técnica, estética e lúdica recorri aos princípios funcionais, estruturais, espaciais e temporais de movimento, bem como aos princípios sensoriais, equalizacionais e posturais, e ainda os princípios transcendenciais, correlacionais e impulsionais. Recorremos ainda à formulação da classificação dos movimentos de ataque e defesa, agrupando-os segundo suas funções como movimentos: educativos, esquivantes, desequilibrantes, traumatizantes, acrobáticos, derivados, de manejos, de bloqueios, de projeções, de imobilizações e de chaves e torções. Para concepção do Ideário de Capoeira, adotamos os movimentos que figuram nas seguintes classes de movimentos: educativos, esquivantes, desequilibrantes, traumatizantes, acrobáticos e movimentos derivados.

 

O Ideário Arte-Luta é também uma proposta de busca e repasse da informação, de desmistificar processos de dopagem, de corroborar com a quebra de preconceitos, estereótipos e discriminações e de implementar a integridade e a autonomia do homem. Além disso, o Ideário visa insuflar a democratização da capoeira e do saber correlato a ela, ampliando o seu usufruto, a transformação do segmento capoeirístico e a sua receptividade por parte de outros segmentos da sociedade. Portanto, as minhas ações seguem em direção ao processo de ensino, de prática e ao de estudo, e ainda mais, orienta os capoeiristas de que não são as atividades que realizam que lhes dão legitimidade, respeitabilidade e identidade no contexto específico e na sociedade, mas, isto sim, a competência, a conduta e o compromisso com que cada qual milita diariamente.

 

(Este texto é reescrito a partir de trechos extraídos do livro Idiopráxis de Capoeira de autoria do Mestre Zulu, publicado em 1995.)

Binômio Arte-Luta

Para concepção do Ideário Arte-Luta busquei desvendar as funções simbólicas estabelecidas nas diversas formas históricas da capoeira e formar um acervo através da seleção, adoção, reformulação ou exclusão daquelas funções de conformidade com os esquemas e sistemas simbólicos atuais.

 

 Capoeira é luta de bailarinos. É dança de gladiadores. É duelo de camaradas. É jogo, é disputa - simbiose perfeita de força e ritmo, poesia e agilidade. Única onde os movimentos são comandados pela música e pelo canto. A submissão da força ao ritmo da violência à melodia. A sublimação dos antagonismos (Dias Gomes apud Zulu, 1995, p.29).

Arte, s. f. conjunto de preceitos e regras para fazer ou dizer bem qualquer coisa: (...) \\ Belas-Artes, as que tem por fim representar o belo e excitar a nossa sensibilidade, e são o desenho, a pintura, a escultura, a arquitetura, a música, a dança, a oratória e a poesia (Aulete, 1958, p. 499).

Luta, s.f. combate corpo a corpo; (...) \\ Combate, ação pugna, recontro. \\ Resistência.\\ o ato de exercer uma grande atividade no intuito de conseguir um certo fim mais ou menos difícil de obter; (...). (Aulete, 1958, p. 3044).

 

O binômino Arte-Luta representa as nossas opções e concepções de uso do próprio corpo para exprimir o belo, excitar a nossa sensibilidade e sublimar os antagonismos através da capoeira - este é o grande salto de qualidade que estamos experimentando. O Ideário Arte-Luta propícia o estado de ser pelo vivencial-operativo e pelo vivencial-operativo busca-se o entendimento do próprio sentido da vida e da transcendência humana.

 

O Ideário Arte-Luta não é uma proposta de regulação do homem em relação ao sentido da vida e da transcendência humana, a ação é livre para criar ou recriar sem, no entanto, buscar solucionar as conclusões em suas causas primárias, e assim a capoeira assume o caráter de arte. A capoeira em sua parcela essencial de arte dirige e molda a perfeição e o belo de conformidade com cada momento psicossocial do contexto capoeirístico. A perfeição e a beleza acumuladas desde os primórdios, não são do capoeirista, o seu maior agente, mas da própria cultura motriz, da própria capoeira praticada pelo homem. A parcela essencial de arte determina a capoeira a ser produzida em relação à maneira pela qual a capoeira como tal e em si mesma deve ser executada, universal e imaterial, a comunicação através do corpo sem, no entanto, diligenciar ou tolher o livre-arbítrio do capoeirista.

 

A capoeira na sua parcela essencial de luta visa elevar a integridade, a autonomia e bem estar do homem, exercitando e aprimorando a gestualidade, a eficiência e a perfeição do manifesto capoeira, motivada e produzida pelo negro, mas também a virtude do capoeirista que usa livremente a sua consciência. Na sua parcela essencial e luta, reside também o repertório da gestualidade, da conduta e das atitudes do capoeirista, que pode alcançar o livre uso do limiar da eficiência e da perfeição, enquanto livre de sua consciência objetiva ao transcender-se no jogo da capoeira. Ainda mais, a sua parcela de luta dita os preceitos aplicáveis no ritualismo, na polifonia e nos valores correlatos. No entanto, os nossos sentimentos e as circunstâncias físicas, nos incapacitam a aplicá-los sempre como é o desejável. Diante da proposta deste Ideário, nada melhor para denominar e distinguir o nosso ensino e a nossa prática de capoeira do que o binômino Arte-Luta; Ele se ajusta perfeitamente aos objetivos definidos e buscados por mim dentro dos princípios de tratamento da capoeira e dentro da sociedade; Ele é a síntese da evocação primeira - capoeira: minha arte, minha luta.

 

Por fim, na formulação do Ideário Arte-Luta optei por uma prática corporal formada pela conjunção do gesto-musicultural com as qualidades físicas, expressa pela movimentação constante na consecução de quedas por desequilíbrios, de traumatismos por impactos, de defesas por esquivas, da plasticidade pelo estilo e da transcendência pela polifonia.(Zulu, 1995, p.20)

 

(Texto extraído do Livro Idiopráxis de Capoeira de Autoria do Mestre Zulu, publicado em 1995.)

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